1 de jun. de 2017

Uma reforma e dois mundos

Por: Vinícius Oliveira Rocha

O colégio é um dos três públicos da cidade
a contarem com o Ensino Médio Inovador
Da Avenida Visconde de Maracaju veem-se grades pintadas de vermelho e uma vegetação cobrindo parte da calçada. Uma rua de paralelepípedos conduz ao interior da escola, ladeada por mais vegetação e algumas árvores, num cenário ligeiramente desértico, e ao seu final encontra-se um prédio onde está escrito: “Centro Experimental Ministro Marco Maciel”. Nas paredes, pinturas datadas de alguns anos atrás comemorando os 510 anos de descobrimento do Brasil. Nas vigas, algumas frases ofensivas.

Do outro lado da cidade, não muito longe do terminal do DIA e da Avenida Paulo VI, ergue-se o Módulo, um dos principais colégios particulares da cidade. No seu interior há intensa movimentação por causa das festividades de Carnaval direcionadas às turmas do ensino infantil. Na cantina, um painel exibe diversos troféus colecionados no decorrer dos mais de vinte anos do colégio, enquanto um banner exibe o rosto de um aluno que conseguiu nota máxima em Ciências da Natureza no último ENEM.

Estes dois microuniversos, tão distintos entre si, carregam nestes últimos dias uma similaridade: como muitas outras escolas em Sergipe e no Brasil, precisarão lidar com as mudanças a serem implementadas pelo Novo Ensino Médio, sancionado em forma de lei no último dia 16 de fevereiro. Desde o seu anúncio como medida provisória, em setembro do ano passado, o projeto tem sido alvo de duras críticas e também de muita controvérsia, em parte provocada por desinformação do próprio governo e pelo atual cenário político do país.

Quais implicações da Reforma para as redes de ensino público e privado? Para chegar a essa resposta, foram entrevistados gestores, professores e alunos de ambas as escolas, que oferecem uma visão ampla do assunto e dos impactos que o Novo Ensino Médio trará para a educação sergipana e brasileira.

O fim da obrigatoriedade

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a ser definida pelo governo, modelará, de acordo com a descrição encontrada no seu site, “quais são os elementos fundamentais que precisam ser ensinados nas Áreas de Conhecimento: na Matemática, nas Linguagens e nas Ciências da Natureza e Humanas”. Pela proposta do Novo Ensino Médio, o estudante verá do 1º ano à primeira metade do 2º um currículo obrigatório de disciplinas, e da segunda metade em diante poderá optar pelo seu próprio currículo, com apenas Matemática, Português e Inglês mantendo-se como obrigatórias. A medida causou polêmica pelas linhas originais do texto da medida provisória que antecedeu a lei e diziam que haveria uma “exclusão” de disciplinas como Artes e Educação Física. Mesmo com uma reformulação e explicação do MEC de que não haveria essa exclusão, a permanência ou não de disciplinas como as das Ciências Humanas e da Natureza neste currículo permanece nebulosa e gera críticas de profissionais e alunos.

No Marco Maciel, os olhos da diretora, Adriana Hora Santos, 45 anos, brilham quando fala da Reforma. “Enquanto gestora, eu estou deslumbrada. Me possibilitou voltar a botar no papel tudo aquilo que antes eu desejava. Hoje, o MEC está dizendo que vai nos dar sustentação, e que a Secretaria de Educação vai dar sua contrapartida”.

Ela destaca a estrutura ímpar do colégio, que ao lado do Atheneu e do Vitória de Santa Maria é um dos três da rede integral a já contar com ensino integral desde 2009, com a implantação do projeto “Ensino Médio Inovador”. Ela também afirma que os gestores foram devidamente informados acerca do processo por parte do governo.

“(...) Aqui na escola houve diálogo: o Conselho ficou sabendo, os professores ficaram sabendo. Acredito que com as outras escolas os gestores foram pegos de surpresa eles próprios. Foram chamados pela Secretaria e veio essa proposta, que também para a equipe gestora de lá foi feita rapidamente. Foi tudo dialogado. Se os gestores não repassaram para os professores, talvez eles não se sentiram seguros.”, garante Adriana.

Em apenas duas décadas, o Módulo se destaca como
um dos melhores colégios particulares da cidade
Essa visão otimista, porém, não é compartilhada por Paulo Mesquita, 51, o qual leciona há 34 anos e é vice-diretor do Módulo, no qual trabalha desde 1995. Além de afirmar que não houve diálogo da parte do governo com as escolas privadas, acredita que estas já oferecem muitos dos pontos a serem implementados pela Reforma, como a carga horária expandida. Já quando questionado sobre como enxerga o possível fim da obrigatoriedade de algumas disciplinas através da definição que será proposta pela BNCC e a oferta de currículos que o aluno poderá escolher, demonstra desgosto com esse ponto.

“A educação básica é o que alicerça a educação, o aluno na sua formação profissional. Você vai pegar um aluno com 15 anos de idade e dar o poder de escolha a ele para deixar de fora, por exemplo, Ciências Humanas, que ele acha que não lhe é importante. Ora, História, Geografia, Filosofia e Sociologia são fundamentais a qualquer área, vão lhe dar desenvoltura suficiente para defender seus pontos de vista, para ficar antenado com o que está acontecendo, criticar ou aceitar opiniões adversas às suas. Aí você negligencia essa parte e decide cursar Engenharia. Depois de um ou dois anos vê que não quer mais cursar aquilo, quer ir para uma área onde é necessário um conhecimento de Ciências Humanas. Cadê sua formação básica? E outra: como você vai dar poder de escolha a um aluno sobre algo que ele não conhece?”, questiona Mesquita.

Segundo Joseline Tavares, 42, professora de Sociologia do Marco Maciel desde 2013, a oferta de currículos e disciplinas dependerá da realidade em que cada escola está inserida.

“(...) Eu sou de chão de escola, e nunca vi uma igual. Cada uma tem seu perfil. O Marco Maciel atende a um público de periferia, onde há vários problemas de ordem do aluno, familiar – famílias desestruturadas –, ou necessidades grandes em termos de alimentação, subsistência. Então é diferente de escola para escola, mesmo que estejam na mesma região. Muitos alunos se miram no professor, o têm como referência e querem fazer uma licenciatura”.

Já para o professor de Artes Rafael da Conceição Santos, 27, que trabalha no Centro Educacional Mundo Mágico há quase 3 anos, a lógica por trás da exclusão dessas disciplinas do rol obrigatório relaciona-se com fatores econômicos, inclusive. “(...) Sem demanda dificilmente uma escola particular de pequeno ou médio porte vai manter uma disciplina que não gerar lucro. Então é bem provável que essas disciplinas [das Ciências Humanas] nem sejam ofertadas nas escolas particulares”.

As visões antagônicas se revelam até mesmo entre os alunos de ambas as escolas. Para Lauriana Resende Santos, 17, estudante do 3º ano do Marco Maciel, é possível sim que os estudantes do ensino público passem a ter as mesmas chances dos do ensino particular, crendo que “tudo depende do aluno, do desempenho que a pessoa quiser ter, da força de vontade que tiver”. Já Alícia Bianca Dias Oliveira, 14, estudante do 1º ano do Módulo, discorda. “Não adianta de nada implantar o Novo Ensino Médio e continuar com aquela velha história de não ter professor, não ter investimento nas escolas públicas. Eu acho que pra funcionar bem tem que haver esse investimento de verdade”. Além disso, ela crê que haverá problemas para os alunos realizarem o ENEM – cuja estrutura até o momento permanece inalterada pelo governo – não mais detendo o conhecimento sobre determinadas áreas que eles deixarão de cursar na escola.

Seu colega Lucas Lima Gregório, 14, partilha da mesma opinião. E quando questionado acerca do fim da obrigatoriedade das disciplinas, afirma em tom de suspeita: “É interessante que sejam justamente matérias que estimulem o senso crítico aquelas que os governantes querem que deixem de ser obrigatórias”. Já Maria Eduarda Fontes, 17, estudante do 3º ano do Módulo, acrescenta que muitos professores com mestrado e doutorado nessas áreas podem vir a perder seus empregos. Tanto ela quanto seu colega Gabriel Pinheiro, 17, acreditam que a oferta de currículos específicos durante parte do Ensino Médio dará ao estudante a capacitação necessária para ingressar na área desejada no vestibular, mas em detrimento das demais que não serão obrigatórias para o seu currículo.

As polêmicas do "notório saber"

Um dos pontos mais controversos da Reforma, a contratação de profissionais com “notório saber” é garantida pelo MEC como sendo restrita aos cursos técnicos e profissionalizantes. Os gestores a apoiaram, mas com algumas ressalvas. Adriana relembrou as oficinas comunitárias realizadas na escola em anos anteriores, uma das quais foi ministrada pela mãe de um dos alunos, costureira. Para ela, o notório saber é aplicável, desde que estes profissionais e oficineiros recebam suporte metodológico. Ponto semelhante é defendido por Paulo Mesquita, que se refere a si mesmo como um exemplo por conta da sua formação como engenheiro químico, e afirma que o profissional deve ser submetido a avaliações que meçam sua didática e metodologia, inclusive por parte dos próprios alunos.

Porém, nem mesmo essas formas de avaliação são suficientes para Joseline, que enxerga esse ponto como “um absurdo”. Ela questiona os critérios de avaliação deste profissional, acreditando que os resultados da implementação do “notório saber” serão uma crescente desmotivação dos professores e evasão dos alunos. Já a visão de Rafael, quando indagado se a contratação desses profissionais poderia se estender para o ensino básico, surge como um “meio-termo” para as opiniões dos demais.

“É um ponto complexo, pois eu acredito que o conhecimento vai além do que estar numa sala somente recebendo informações de alguém, e também acredito que ele acontece diariamente. É preciso haver alguma forma de ser comprovado esse conhecimento. Eu não acredito que a formação seja ameaçada, no entanto o emprego pode ser que sim, pois pensando que uma escola particular possa querer se adaptar a essa situação querendo oferecer a um profissional com ‘notório saber’ um salário menor para as mesmas funções, a situação pode ficar complicada. ”

O futuro da educação

Mesmo cercado de críticas e controvérsias, o Novo Ensino Médio agora é lei e se tornará realidade no ensino brasileiro a partir de 2018. A forma como o a Reforma foi aprovada, com impressionante rapidez e em forma de medida provisória para aceleração do processo, indicou claramente os interesses do governo. Mesmo Adriana, que afirmou ter havido diálogo entre governantes e gestores, admite que a Reforma foi aprovada como forma de garantir uma marca à gestão Temer, embora saliente que as sementes dela existissem desde o governo Dilma.

E agora, o que será? Um ponto em comum observado pelos entrevistados foi o de que a Reforma em nada diminuirá o abismo ainda existente entre as redes de ensino públicas e privadas. Se estas já contam com uma estrutura voltada para a aprovação do aluno no ENEM e outros vestibulares, aquelas sofrem ainda com a precarização.

Os cursos técnicos, que segundo Mesquita serão uma realidade mais concernente à educação pública do que à privada, são outro indicativo das diferenças que continuarão existindo. Exemplo disso é o desejo de Lauriana em seguir a carreira técnica de Enfermagem. Mesmo que em seu caso ela afirme querer depois fazer uma graduação na área, não há dúvidas de que muitos alunos, desmotivados pelo que Mesquita coloca como a ingerência das gestões do ensino público em atender as demandas do Novo Ensino Médio e o abismo em relação ao ensino privado, migrarão para os cursos técnicos para terem uma formação garantida – o que também possibilitará uma mão de obra especializada para o mercado de trabalho, o que segundo Adriana é um dos objetivos da Reforma.

Assim, não é de todo exagero dizer que o Novo Ensino Médio carrega em si pontos positivos, mas toda a sua anunciação e implementação têm sido problemáticas, acompanhadas de uma propaganda ostensiva do governo que muito fala, mas pouco informa – e só contribui para as críticas que o projeto vem recebendo. É tênue a linha entre um futuro melhor para a educação e a prevalência dos interesses políticos e econômicos do atual governo na implantação dessa Reforma. E se a essa altura ela já foi oficializada, resta esperar para ver qual lado prevalecerá – e como essa vitória, independentemente de quem seja, afetará o próprio país.


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