30 de mai. de 2011

Contra a pobreza jurídica.

Por: Manuella Miranda


Primeiro sergipano a presidir o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), entre 2007 e 2010, Raimundo Cezar Britto Aragão está agora à frente da Comissão de Relações Internacionais da entidade. Aos 49 anos promove intercâmbios entre advogados brasileiros e de outros países, guiado pelo lema de que "um país que quer se grande economicamente não pode ser pequeno juridicamente". Nesta entrevista ao Contexto Repórter A, ele se revela um "orgulhoso sergipano de Propriá" (cidade às margens do Rio São Francisco) e cita escritores como Gabriel Garcia Marquez e Fernando Pessoa para ilustrar sua filosofia de vida e de profissão.

Repórter: O senhor foi o primeiro sergipano presidente do conselho federal da OAB. Que significado isso teve para sua carreira, sua vida pessoal e para o estado?
Cezar Britto: Quando tomei posse na OAB, registrei uma coisa que eu penso: sou fruto do que fizeram por mim, fruto do meu passado, do meu presente e do que penso para o a

manhã. Nesse momento, trouxe comigo o meu “matulão” [ideais] e dentro dele estavam os advogados sergipanos que acreditaram em mim e tudo o que me ensinaram meus pais e meus amigos. Fui um sergipano que tomou posse coletivamente, não sou o primeiro, porém vários que tomaram posse no mesmo dia. Porque sou fruto de tudo isso junto, não pertenço ao bloco do “eu sozinho”, sou um somatório de pessoas que me ensinaram e me ensinam todo o tempo.
Repórter: Nessa nova fase da sua vida, como é ser presidente da Comissão Nacional de Relações Internacionais do Conselho Federal da OAB?
Cezar Britto: O Brasil cresce hoje de forma inimaginável tempos atrás. A nossa nação deixou de ser a república das bananas, o país do futebol, o país do samba, para ser uma potência econômica e política. Mas para que ela evolua, é preciso um crescimento com segurança, conhecendo seus direitos e os direitos dos países em que vai se estabelecer. Daí a importância do mantra que tenho repetido para os advogados brasileiros e para as autoridades: “um país que quer ser grande economicamente, não pode ser pequeno juridicamente”. É preciso que os advogados cresçam, se internacionalizem, compreendam esse momento único do seu país e se insiram nesse cenário internacional. Há uma reflexão de Gabriel Garcia Marquez no seu livro “Cem anos de solidão”, em que o seu personagem principal, ao rememorar sua vida e lembrar-se de todas as coisas que já fez, diz à seguinte frase: “a vida é irrepetível”. Eu tenho dito isso, que o Brasil está num momento econômico e político tão grande, tão bom, que nós temos que nos inserir nele sob pena de perdermos esta oportunidade, e quando se perde uma oportunidade, podemos ser condenados “a cem anos de solidão”.
Repórter: Com temas como o tráfico internacional de seres humanos na mídia, como são as ações da Comissão de Relações Internacionais de cooperação entre o Brasil e outros países?
Cezar Britto: A OAB tem duas funções claras, a função coorporativa, de defender os interesses dos advogados, e a função institucional, de defender o estado democrático de direito e os direitos humanos. Na Comissão de Relações Internacionais da OAB procurei imprimir esse perfil dos direitos humanos de forma mais forte, assim como fiz na minha estada na presidência no Conselho Federal. Em razão disso, fizemos vários convênios com outros países para a defesa dos seres humanos. Temos convênios com Portugal, França, Espanha e vários países da América do Sul. Começamos a trazer advogados de outras nações para estagiarem no Brasil. Já trouxemos aproximadamente 45 advogados africanos e recebemos constantemente advogados da República Dominicana, de Honduras, do Sudão, que vêm aqui aprender a nossa legislação. Além de mandarmos advogados brasileiros para outros países, mantendo um intercâmbio. Agora em Junho estaremos mandando quatro advogados para estagiarem em Paris, na França. Tudo isso serve para compreender a importância da solidariedade e da vida da pessoa humana. Hoje, o Brasil é o país da moda, todo mundo quer visitá-lo e conhecê-lo. Ele passa a interagir internacionalmente de forma mais forte do que se fazia no passado. Costumo dizer que o brasileiro sabe o que é escravidão para não querer escravizar, sabe o que é ser colonizado para não querer colonizar, sabe a importância da imigração, das diferenças, para não querer impor a sua vontade. Somos um povo diferente, um povo que tem tolerância religiosa, política, filosófica, e essa diferença é que está sendo a grande novidade nas relações internacionais. O Brasil sem dúvidas é a novidade do mundo.
Repórter: Qual foi o momento mais marcante da sua vida profissional?
Cezar Britto: É o que ainda não fiz. Sou um ser em constante ebulição, um ser inacabado, que quer ainda continuar fazendo. Meu momento é o que ainda não foi vivido, mas o que viverei. Mas tenho uma concepção muito clara que o momento mais importante da vida de um ser humano é o hoje, e o que construímos nele, se não nós não teremos um futuro. Não penso no lá, se eu não fizer o agora.
Repórter: De que forma o senhor contribuiu para levar o nome do seu estado para o resto do país?
Cezar Britto: Eu não sei, só sei que sou um sergipano muito orgulhoso. Nos livros que publico, nas palestras que dou, nas manifestações que falo ou quando sou anunciado faço questão de usar a primeira expressão, sergipano de Propriá, para depois mencionar um cargo. Faço isso para que nós compreendamos, como diz Fernando Pessoa: “o que vale é o tamanho do olhar e não o tamanho físico”. Quando o sergipano compreender cada vez mais isso, nós iremos ocupar espaços inimagináveis. Temos uma qualidade técnica, ética, e de irmandade que pouco se vê. Dou um exemplo: quando falo que Aracaju é a síntese do Nordeste e explico dizendo que quando falamos “nós e você” como fala o baiano e não o “tu” do pernambucano, falamos com o sotaque nordestino, e não com o sotaque baiano. Gostamos de acarajé, como gostamos de beiju de tapioca. Nosso carnaval não é o frevo, é o axé, mas também gostamos das machinhas cariocas. Somos um pouco de tudo, uma síntese da própria região. Se o sergipano entender que ele é cosmopolita, que ele consegue fundir todas as tribos numa só, ele vai avançar cada vez mais. Só é preciso aceitar que ele é absolutamente igual aos outros e ninguém é melhor que ninguém. Aí sim, ele vai começar a ocupar o espaço que é dele. É preciso também parar de falar que Sergipe é um pequeno estado. Pequeno atrai pequeno, e pequeno quer dizer menor.
Repórter: Encontrou dificuldade para Consolidar o seu nome perante pessoas de outros estados?
Cezar Britto: Eu nunca me preocupei com a parte do nome em si, tanto que ainda é estranho quando alguém me chama de doutor ou me trata de forma diferenciada, mas o nome não é importante. Tem uma frase que diz assim: “só sente o preconceito quem dele tem a razão de ser o alvo”. O negro em relação a ser negro, o índio em relação a ser índio e o nordestino em relação a ser nordestino. Durante a minha caminhada na Ordem, quando o mandato começou a ser muito elogiado, muita gente me confundia com um paulista. Como se fosse impossível um nordestino, um sergipano, fazer um mandato de sucesso. Já escutei uma frase de elogio de um advogado mais ou menos assim: “Britto parabéns, eu não sabia que tinha pessoas inteligentes assim no Nordeste”. Ou outra de um conselheiro de uma Ordem do Sul dizendo assim: “Britto parabéns pela sua gestão, você foi um dos melhores presidentes da Ordem. Sei que você não faz mais porque o seu conceito é conservador, um conceito de Nordestino”. Essas expressões refletem inconscientemente um preconceito contra os nordestinos. Mas é por isso que eu sempre reforcei, não só o fato de ser sergipano, mas do interior de Sergipe, de Propriá. E exagero cada vez mais no meu sotaque, ele é bastante carregado quando falo. Na OAB quebrei alguns preconceitos, fui o presidente mais jovem da advocacia trabalhista e o mandato foi tão elogiado que fizemos um sucessor nortista e também advogado trabalhista. Com essas duas gestões acabamos de vez com qualquer insinuação externa de preconceito.
Repórter: Qual foi o maior desafio da sua carreira?
Cezar Britto: A vida tem vários desafios, o importante é superar obstáculos. O desafio de querer ser advogado quando pensava em ser psicólogo. O de entrar no movimento estudantil, que me ensinou a importância da luta e da resistência democrática. O de não ter abandonado o ideal da advocacia, ainda quando jovem, recém-formado, casado e com filhos, sustentado inicialmente pelo recurso que a esposa recebia de um banco privado, mas nunca ter desistido. Em ter acreditado que advogar para mim tem um lado, e o meu lado sempre foi o social, mesmo quando todo mundo achava que isso era pequeno. De ter decidido entrar na OAB, sendo o mais jovem, quando fui conselheiro. São vários desafios e eles se desencadeiam. A vida é um somatório de coisas, não tem uma mais importante do que a outra. Não consigo definir qual é o meu momento mais importante. Porque para mim, os cargos eram encargos e são encargos. É uma missão, não é uma função. O mais importante é compreender a importância das coisas. Quando deixei o mandato fiz um discurso de aconselhamento para aqueles que acreditam em marcos e expliquei o que ele foi e porque se tornou respeitado no Brasil. Ele não era um mandato de marco, mas sim de vários marcos. Assim como foi o exame de ordem unificado, o combate ao preconceito, o combate ao estado policial, o combate à violência, a defesa da democracia. Uma vida não pode ter um marco, tem que ter vários marcos.
Repórter: Quando e como o senhor descobriu que queria fazer o curso de direito?
Cezar Britto: Eu entrei na faculdade disposto a fazer Psicologia e cursei várias disciplinas. O que me marcou para ir para o Direito foi quando entrei para o movimento estudantil, quando você começa a lutar, não mais para si mesmo ou para o seu grupo, mas para um todo. Na época, nós lutávamos para redemocratizar o país e termos um ensino de qualidade, e que a universidade fosse cada vez mais aberta à sociedade. E essa compreensão de mundo que se constrói na luta, que equivale à própria advocacia, é que me levou para esse caminho. Tanto é que conjugo como palavras sinônimas, advocacia e cidadania, pois os dois simbolizam a mesma coisa.
Repórter: A partir de que momento da sua vida, surgiu a ideia de criar a Sociedade de Estudos Múltiplos, Ecológica e de Artes - Sociedade Semear?
Cezar Britto: É uma palavra muito forte para mim, que se chama retribuição. Sou filho de escola pública, minha universidade foi pública, e tudo que tenho financeiramente decorre desse conhecimento pago pela sociedade. Sempre compreendi que assim como nós pegamos emprestado alguma coisa, nós temos que contribuir pagando, de preferência com mais vantagens do que aquilo que lhe foi emprestado. Se eu recebi tudo que eu tenho, da escola pública e da sociedade, eu tinha uma necessidade muito clara de retribuir. A Semear é uma retribuição que fiz ao que sou e ao que me ensinaram a fazer. Ela é uma instituição que não me pertence, tem vida própria e como um filho, trilhou e está trilhando sua própria história. Eu apenas dei o pontapé, assim como a sociedade deu em mim o seu próprio pontapé.